Revirando arquivos antigos nos meus HDs, encontrei essa entrevista que fizemos com o diretor Jos de Putter, do documentário Beyond the Game.
Importante: A entrevista está em inglês! No post temos a transcrição completa da entrevista.
Transcrição da Entrevista
Johnny: Como era a sua relação com video games antes e depois de “Beyond the Game” (“Além do Jogo”, 2008)? Como cineasta e crítico, até que ponto o sr. conhecia os aspectos envolvidos nas competições internacionais de video games?
Jos de Putter: Era praticamente zero. Eu não sabia nada sobre video games antes disso. Achei interessante como havia toda essa nova subcultura para jovens e em determinado momento li uma entrevista com o pessoal da Blizzard. Rob Bardo (Vice-presidente de Game Design da Blizzard) dizia que talvez a forma como os jogos são desenvolvidos e o papel que eles representam na vida dos jovens muda muito a natureza da narrativa. Geralmente, na literatura, por exemplo, você conhece o herói e através dos trabalhos do herói você aprende algo a mais sobre a sua própria vida, como decisões morais, etc. O mesmo ocorre no cinema: você se senta e assiste a um filme com um herói que desenvolve a narrativa e você pode aprender algo sobre a vida. Já nos games, o público não é só espectador, mas também jogador, o que significa que tem um papel ativo na história que se desenrola.
Johnny: Não é uma atividade passiva.
Jos de Putter: Exatamente. E isso é muito interessante, de um ponto de vista bastante amplo e filosófico. A geração de vocês cresceu nessa cultura, com toda uma nova abordagem, e novas histórias nas quais o jogador é envolvido, e para mim esse universo foi introduzido a mim dessa forma, através das palavras de Rob Bardo. Ainda é um universo muito distante para mim, é claro, mas eu preciso desse tipo de abordagem nos meus filmes, como ver a coisa do ponto de vista filosófico também. Eu viajei até Milão, onde estava ocorrendo o Campeonato Mundial de 2006 e tive um jovem, holandês também, que me acompanhou e me introduziu ao evento, pois eu ainda não sabia sobre o que seria exatamente o meu filme, já que há tantos jogos diferentes. Achei alguns dos jogos bastante idiotas, inclusive. Assisti a uns jogos do campeonato mundial de FIFA… e o que presencio? Uma final Brasil contra Brasil!
Guija: Não é muito real, isso não poderia acontecer na vida real!
Jos de Putter: Eu sou um grande torcedor de futebol, então achei totalmente rídiculo assistir a Brasil x Brasil.
Johnny: Não se parece nem um pouco a um campeonato mundial!
Jos de Putter: Mas então eu assisti a uma partida entre Sky e Grubby, todos aqueles jovens em volta e eu não sabia nada sobre o jogo, mas consegui sentir a atmosfera, a concentração, o esforço e dedicação dos jogadores. Tudo isso me atraiu, foi o que deu início ao projeto do filme.
Guija: Quando o sr. viu Grubby e Sky, talvez foi nesse momento que o sr. pensou “esses são os personagens do meu próximo filme”?
Jos de Putter: Sim, imediatamente. Alguém que eu também achei que era muito interessante naquele momento foi Moon. Eu falei com todos ali, mas era muito difícil falar com Moon, parece que ele realmente está no mundo da lua [N. do E.: trocadilho com “moon” do inglês, que significa “lua”]. Apesar de ter achado Moon muito inteligente e simpático, também achei mais difícil conversar com ele, e Sky e Grubby também eram personagens extremamente fascinantes. Conversei com esse jovem holandês que me acompanhou no evento e ele me explicou a diferença entre os dois: Grubby é como um artista para toda a cena de ”Warcraft”.
Johnny: Ele é uma espécie de “superstar”.
Jos de Putter: Sim, os dois são “superstar”, mas a questão é que Grubby é visto como um artista, como um jogador que faz um trabalho realmente bonito de se ver, enquanto Sky é um cara mais trabalhador. Eu achei que seria interessante ver esses estilos diferentes em perspectiva. Sou europeu, então me identifico mais com o estilo de Grubby, olhar a beleza do jogo, e esse tipo de coisa. Ao mesmo tempo, na vida real, na economia, etc., nós e o resto do mundo temos que trabalhar com a China, essa máquina gigante e tão forte, que simplesmente não para nunca. E Sky é uma representação da China, seu estilo, a perseverança, ele sempre continua, não para nunca, e talvez não faça coisas brilhantes, que ninguém nunca viu antes, como Grubby e Moon já fizeram, mas muito difícil de ser batido também, é claro.
Johnny: É um mundo totalmente diferente. Nós separamos uma pergunta aqui sobre o choque cultural que “Beyond the Game” apresenta ao público. Como o sr. achou que o público veria esse duelo entre o Oriente e o Ocidente?
Jos de Putter: Isso é o que eu realmente tentei mostrar. Se o público conseguiu enxergar além da mera história desses dois garotos, posso considerar que fui bem-sucedido com o filme. As vidas deles são diferentes, seus estilos são diferentes, as formas como eles lidam e se comportam com outras pessoas são diferentes entre si, e isso é um choque cultural também. Eu tentei fazer um filme que mostrasse esse contraste, apesar de gostar dos dois e não favorecer nenhum dos dois. Durante as filmagens, eu me senti como sendo um pai para eles, pois tenho o dobro da idade deles, foi muito interessante vê-los como sendo meus próprios filhos.
Guija: O filme é muito bem arquitetado e acho que o mérito disso está no roteiro. Nós conseguimos ver uma guerra virtual entre Oriente e Ocidente, é como Rocky contra Ivan Drago, o homem trabalhador contra a alta tecnologia. Eu adoro a cena na qual Sky acorda. É chocante para a maior parte do público, pois em uma única cena você entra em toda a rotina desses caras, e é algo totalmente insólito. Você simplesmente não acorda e no outro segundo está jogando um video game. O sr. recebeu alguma crítica ou comentário dizendo que o filme favorece um dos dois jogadores?
Jos de Putter: Não, acho que não. Talvez Grubby tenha achado isso, tenha ficado despontado. Ele chegou a dizer que o meu filme era, na verdade, sobre Sky e que ele era só “o cara que ele vence”.
Guija: Acho que isso acontece exatamente pelo o que o sr. disse, de Sky ser mais “poético” de alguma forma, a ideia que o Ocidente tem do Oriente, não é isso?
Jos de Putter: Com certeza. Eu sou holandês, então para mim é mais interessante filmar na China do que na Holanda, então é possível ver a diferença do olhar sobre Grubby. Ainda assim, gosto muito da cena no início quando podemos ver a mãe do Grubby fazendo sanduíches pra ele, porque nas velhas histórias de heróis sempre há a figura da mãe do herói preparando-o para que ele saia pelo mundo para desempenhar grandes obras e se tornar um herói de verdade. Mas quando você está na casa de Sky, que estava realmente vivendo no meio do nada, em um pequeno e distante vilarejo chinês, você sente a poesia do lugar. E aí você pensa: “esse cara veio de tão longe”…
Johnny: Como foi o cronograma de filmagens de “Beyond the Game”? Foram necessárias várias equipes para acompanhar as personagens? Quanto tempo levou a produção do filme?
Jos de Putter: Bastante tempo. Quando eu pensei “OK, isto pode virar um filme” era novembro de 2006, que foi quando eu fui a Milão e vi os jogadores pela primeira vez e depois disso você tem os trâmites de praxe para tentar financiar o filme. No segundo semestre de 2007 eu precisava ver se Sky se qualificaria na China, porque existia a possibilidade de isso não acontecer, há muitos jogadores fortes na China. Se Sky não se qualificasse, eu não teria filme nenhum, e isso pode acontecer, porque estamos lidando com a realidade. A mesma coisa aconteceu depois quando eu já estava filmando o campeonato mundial em Seattle. Eu havia preparado o roteiro para que as duas personagens se encontrassem na final, mas isso simplesmente não aconteceu. E não foi só isso: o jogo no qual eles se enfrentaram não ocorreu no palco principal, mas numa sala dos fundos, um sentado ao lado do outro, e nas quartas de final, ainda por cima. Claro, isso não era nem de perto o nível de espetáculo que eu queria para o filme. Eu tentei prever essa “falha” no planejamento também e achei que era uma boa ideia filmar cada um deles quando jogassem uma partida decisiva no palco principal. E foi assim que construí o filme, fiz parecer muito mais espetacular o confronto deles reunindo essas imagens. Na verdade, usei o confronto de Sky contra Moon no qual Sky saiu vitorioso e muito vibrante, achando aquilo incrível mesmo, e saiu achando que a final seria muito mais fácil, já que se tratava de um holandês que não era considerado tão forte.
Johnny: É uma competição real e você não pode prever tudo, é claro.
Jos de Putter: Mas tudo isso foi muito bom para o meu filme. Não foi muito bom para Sky, é verdade, mas fez bem ao filme. E eles ficam arrasados com a derrota. É interessante como nós documentaristas pensamos os nossos filmes de um lado, mas há a realidade de outro. A sua tarefa como diretor é encontrar o equilíbrio nisso, e às vezes somos bastante surpreendidos. Eu só tinha uma câmera e pensava que Sky seria o campeão mundial, então colocamos a câmera nele, mas o que captamos foi o momento no qual ele percebe que perdeu e vê como toda a sua vida, todo o seu caminho até a final do campeonato mundial foram em vão. Como ser humano, fiquei com pena de Sky, mas como cineasta fiquei muito contente com a sua derrota, pois dá ao filme uma dimensão completamente diferente.
Johnny: Os protagonistas de “Beyond the Game” são admirados por um grupo muito específico de pessoas e nós, os espectadores vemos o lado bom e o lado ruim das suas personalidades. Você tentou prever como o público veria e julgaria essas personagens?
Jos de Putter: Eu tinha um artista de um lado, e um rapaz muito esforçado de outro, e tentei mostrar o que significa tomar decisões nessa altura da sua vida. Há uma cena que acho incrível, um diálogo com a namorada de Sky. Ela sabe o que significa a vida de Sky para ele, que se ele tiver que decidir entre ela ou o jogo, ele escolherá o jogo.
Johnny: E ela sempre dá todo o apoio a ele.
Jos de Putter: Exatamente. Na própria entrevista, quando ela fala sobre Sky, ela percebe que o relacionamento acabou. E isso é incrível para mim por uma série de aspectos, como se tratar da China, por exemplo, os chineses geralmente não demonstram muitas emoções. E acho que tive que muita sorte também. O meu tradutor era um amigo holandês estudante de chinês, mas ele teve que voltar à Holanda mais cedo e então, de repente, eu estava no meio da China e precisava lidar com o assistente deles, um senhor chinês de quase setenta anos que não sabia nada sobre games, e eu precisava realizar a entrevista. O que eu poderia fazer? Pedi ao assistente que não a entrevistasse, mas falasse com ela como se fosse o avô dela. E ele conseguiu, ela se esqueceu de que se tratava do assistente e começou a vê-lo mais como seu avô. Acho que foi assim que conseguimos captar toda a emoção nessa cena.
Johnny: É realmente uma ótima cena do filme.
Guija: Isso foi muito inteligente de sua parte, é exatamente isso que um diretor faz.
Jos de Putter: Eu tenho alguns filmes no gabarito, e vamos ganhando experiência, mas você precisa de sorte também.
Guija: Qual foi sua abordagem com as cenas de gameplay? São cenas que fogem um pouco do padrão dos documentários tradicionais e parecem que entram na cabeça dos jogadores, com todos aqueles cliques e movimentos de mouse. Como foi a edição dessas imagens, principalmente no campeonato mundial?
Jos de Putter: As cenas do campeonato estão ligadas às cenas iniciais de apresentação das personagens. Sempre achei interessante como Wong Kar-wai usa o voiceover em “Anjos Caídos” e “Amores Expressos”, com as pessoas levando as suas vidas comuns, mas você só os ouve, as imagens são completamente diferentes. As personagens de “Beyond the Game” vivem em outro universo, um mundo virtual, e eu então precisava desconectar a voz do corpo quando falam sobre si mesmas, e isso foi muito importante na edição. Consegui apresentar Sky dessa forma, você o vê jogando e ele começa a falar sobre ele mesmo em voiceover. No final da introdução, eu fiz o contrário disso: você ouve o comentarista do jogo, mas vê as personagens acordando, ou no ônibus, a caminho do evento. Isso passa a mensagem que todas as suas vidas fazem parte desse jogo até aquele momento, e essa é a ideia fundamental por trás da montagem. Eu não entendo o jogo, não seria muito inteligente da minha parte tentar entendê-lo, tentar entender todos aqueles movimentos e estratégias. Tentei usar o que acontece no jogo como uma espécie de metáfora para o que acontece na vida deles.
Guija: Qual foi a recepção de “Beyond the Game”, tanto de gamers quanto de pessoas que não estão familiarizadas com os jogos eletrônicos?
Jos de Putter: Pude ver nos festivais que os jovens gostam do filme, mas na internet também consigo ver comentários de jovens que acharam “Beyond the Game” o filme mais chato que já viram, porque esperavam algo diferente. O documentário foi lançado num sistema de vídeo sob demanda nos EUA e teve oitocentos mil downloads, um número incrível. Mas eu não havia assinado um bom contrato e não lucrei nada com todos esses downloads! Fiz entrevistas com jogadores muito interessantes, como Sky, Grubby, Moon, etc., e também com desenvolvedores da Blizzard, como o próprio Rob Bardo, e então reunimos essas entrevistas e as colocamos na internet como uma espécie de prévia. Se a pessoa gostasse da prévia e quisesse ver o filme inteiro, precisaria pagar dez centavos de dólar ou algo assim, essa era a ideia. Só que houve um intermediário nisso tudo, que alegava saber fazer esse tipo de divulgação e mudou os planos… e dessa forma eu não ganhei um centavo que seja desses oitocentos mil downloads.
Guija: E a Blizzard ganhou uma exposição absurda! Bom, o sr. se lembra de trazer “Construindo um Novo Império” (1999) de volta à memória enquanto filmava “Beyond the Game”, por se tratarem de universos tão opostos?
Jos de Putter: Como disse anteriormente, esses jovens são verdadeiros heróis para a geração deles, esse aspecto filosófico do qual falávamos, e é esse tipo de coisa que me leva a produzir novos filmes. Em “Construindo um Novo Império” eu conheci essa personagem incrível, que era o chefe da máfia chechena e, claro, muito admirado pelas pessoas ao seu redor, um verdadeiro herói para elas, uma espécie de Robin Hood. Para algumas pessoas ele era um revolucionário, às vezes um assassino, um chefão da máfia, mas o que realmente define o que ele é, é como ele usa a mitologia de todos os heróis que lutam pelos seus territórios ou suas nações, algo que desempenha um papel muito importante na cultura da Chechênia. Essa relação entre mitologia, história e vida real é, de certa forma, semelhante ao que abordo em “Beyond the Game”. Admito que essa relação entre o mundo virtual e se tornar um herói pode parecer um tanto quanto estranho para algumas pessoas.
Guija: É possível ver a sua assinatura tanto em “Construindo um Novo Império” quanto em “Beyond the Game”. As tomadas de dentro de carros, por exemplo, são bastante significativas: a arma pronta para atirar no painel do carro no início de “Império” é tão relevante quanto os pais de Sky dirigindo aquele carro sofisticado no meio do vilarejo, essas tomadas dizem muito sobre as personagens. O sr. acredita que a necessidade de olhar para o outro lado em vez de olhar para o que está no primeiro plano é uma reminiscência do cinema verdade na sua obra?
Jos de Putter: Sim, mas há também a escola holandesa de documentários que está muito arraigada nos nossos filmes. Dizemos que é muito fácil fazer um filme: basta olhar para o outro lado e começar a filmar. Você precisa olhar para o outro lado para enxergar a verdade.
Guija: O catálogo do 14º Festival Internacional de Documentários de São Paulo, o “É Tudo Verdade”, conta com uma citação do sr. na página de “Beyond the Game”:
Eu não acho que seja coincidência a simbologia memorável do tabuleiro de xadrez em “Construindo um Novo Império”, acho que o sr. realmente enxerga alguma relação especial entre os jogos e a humanidade.
Jos de Putter: Eu nunca havia pensado nisso, mas você pode ter razão, claro. Talvez você pudesse escrever um artigo para o “É Tudo Verdade” se eu for a São Paulo no ano que vem, vou pedir isso ao Amir Labaki!
Guija: Seria uma grande honra. Há uma cena com o tabuleiro de xadrez na qual o protagonista diz ao interlocutor que o erro dele é meramente estar jogando um jogo com ele. Ele é um herói, você não pode enfrentá-lo.
Jos de Putter: Sim, é uma frase bastante forte, gosto muito dela. Estava agora mesmo pensando sobre o que você está dizendo, sobre esse aspecto dos jogos na minha obra, e é incrível, eu nunca havia pensado nisso da forma como você expôs. Fiz um filme sobre dois jovens brasileiros que querem se tornar jogadores de futebol (“Solo, a Lei da Favela”, 1994) e outro sobre os torcedores do Brooklyn Dodgers, time de beisebol dos EUA com fama de perdedor (“Brooklyn Stories”, 2003). Na década de 1970, os Dodgers perdiam das formas mais incríveis! Quando a torcida achava que eles estavam a ponto de ganhar a partida, o adversário fazia um home run e acabava com o jogo. Os entrevistados desse filme sobre os Dodgers são idosos, senhores na faixa dos oitenta anos de idade, porque eu queria saber como era a vida de quem só conheceu a derrota, o que isso faz com ela e que tipo de pessoa ela se torna, e acho que acabou virando um filme bem humorado. Também tenho um filme sobre jovens dançarinos (“Danz, Grozny Danz”, 2002), que não é sobre jogos, mas como você lida com a vida através de outra coisa, neste caso, a dança.